quarta-feira, 4 de maio de 2011

Inspira, transpira e teletransporta

A palavra inspiração está em voga. Há vários vídeos sobre o tema no www.ted.com nos quais cada palestrante apresenta a sua respectiva teoria da inspiração. A grande maioria refere-se a "ela" como uma personagem temperamental. Os dois casos que mais me chamaram atenção foram o do compositor americano Tom Waits e o da escritora Elizabeth Gilbert.

O Tom Waits garantiu que a inspiração surge de repente; ele contou que certa vez estava dirigindo o próprio carro pela estrada quando “ela” parecia descer do céu, em formato de letra de música; ele não se fez de rogado, baixou o vidro, inclinou o pescoço em direção ao ombro esquerdo, e expondo a cabeça para fora do carro; olhou pra cima e disse, em tom de indignação:

“Can’t you see that I am driving? If you can’t wait until I stop, go away and look for somebody else.”

A escritora Elizabeth Gilbert também dialoga com a tal "entidade"; e disse que quando escreve, olha para o canto da sala, e lança algo do gênero:

“I am doing my job, please, do yours.”

Pelo que pude compreender, “ela” faz parte de uma conspiração. Se você estiver no lugar certo, na hora certa, é “batata”. No entanto, fico temerosa de eleger um lugar certo e uma hora certa, porque se “ela” for mesmo temperamental, “batata nem por um bugalho” (com o perdão do trocadilho). De modo que para demonstrar a minha total submissão à “excelência”, também criei um rito. Todos os dias antes de escrever, sento em frente à State Library of Victoria e me perco naquela maré de ar e transeuntes.

Foi num dia como esses, enquanto estava seguindo o meu rito em busca de inspiração, que uma aeronave em formato humano-feminino, com longos cabelos negros e jeito de sereia, me interpelou.

“Can I interview you? I am studying English and my homework is to interview people who live here.”

Dei uma pausa no rito, pedi licença a senhora dona inspiração, por se acaso "ela" estivesse disposta a me usar, porém me justifiquei.

“Passo o dia com personagens imaginários; quando alguém em carne viva aparece, é uma festa química.” Pelo que me lembro, “ela” deu de ombros; e pude conversar com a tal sereia terrestre.

“My name is Lin and I am from China. I have to ask you some questions. Do you like Australia?

“Yes.”

"Why?”

“As a friend said once, Australia gets under your skin before you know it. There isn’t a reason.”

Outras questões se seguiram. Nome, de onde você é, idade e quanto ganha.

“In China it is very common to ask age and wage.”

“Really? In Brazil these questions are quite shocking; and I bet it is against our constitution.” Exagerei.

“And what do you do?”

“It is hard to explain. I want to become a writer. This means that I walk, listen, write and I am interviewed; I should add.”

“Having time you should add. You are the first person who is available to answer my questions.”

A conversa foi se estendendo; e resolvemos ir a um café. Na primeira dose de cafeína, confessei o meu fascínio pela terra do dragão vermelho; e em três segundos gastei todo o meu chinês, dizendo: oi/ni hao, obrigada/xie xie ni e não/boo. Porém consegui impressionar Lin, que se dispôs a responder qualquer pergunta.

“Por que é tão importante que o filho seja homem na China?

“Porque a mulher quando se casa passa a pertencer à família do marido. Os pais moram com o filho até a morte. Quando a filha casa, quem vai cuidar dos pais, inclusive financeiramente? Pela tradição chinesa, os filhos rezam para os ancestrais da família. Quem vai rezar pelos pais da filha?”

A essa altura já estávamos na capital. Beijing. A minha anfitriã garantiu que Beijing é tão segura quanto Melbourne; e é comum que as amigas andem de braços dados. Contou também que os chineses, homens principalmente, fumam muito. É quase uma regra social “para ser macho-man”.

De Beijing, ela me levou à muralha. Descreveu cada pedacinho da sua grandiosidade. No entanto, adicionou que a muralha torna-se diminuta se comparada ao exército de terra-cota. O imperador Chinês, que se auto-nomeou o primeiro imperador, mandou construir toda uma cidade para os seus ancestrais, datada de 210 AC. Um exército de aproximadamente 8000 soldados de terra-cota foi confeccionado para fazer a sua defesa; cada soldado tem roupas, armas e expressões diferentes; jóias e objetos de valor também constavam na cidade construída. Um muro foi levantado, enquanto os artesãos manuseavam aquela arte, fechando-os para sempre e evitando que os seus segredos fossem revelados. Esse complexo foi descoberto em 1974 por fazendeiros que escavavam suas terras e se surpreenderam com cavalos, carruagens e soldados, de broze e terra-cota. http://www.artgallery.nsw.gov.au/exhibitions/first-emperor/

“E hoje em dia, as pessoas ainda fazem algo para os ancestrais?”

“Quando alguém morre, tiramos fotos de todos os bens, inclusive aparelhos domésticos, TV, rádio, dvd, dentre outros, e queimamos, para que a fumaça os leve para o ente querido.”

“Estou pasma, Lin. Quero saber também sobre política. What about corruption?”

“What does corruption mean? How do you spell it? I have a digital dictionary from English to Chinese.”

“C – o – r – r - u - p – t – i – o- n.”

“Oh. I see. I’ve never talked about it to anyone in China.”

“Ok. Let’s go back to Melbourne.” Eu lhe propus. 

Aterrissando no nosso café em Melbourne, Lin contou que na China ninguém fala sobre isso; nem em casa, nem entre amigos. Nada. Nunca. Contou também que os chineses vêm estudar na Austrália, porque na China se alguém quiser ir para universidade, os pais têm que começar a bajular, enviar presentes para os professores e oficiais da universidade, enquanto os filhos ainda estão na escola.

“Como se dão as eleições locais?”

“O candidato oferece, por exemplo 50 dólares, para que o eleitor vote nele”.

“E se o concorrente oferecer mais?”

“O candidato, que ofereceu menos, perde.”

“E como são votadas as leis?”

“Quem quer que a lei seja votada diz: se alguém for contra essa lei, favor, colocar seu nome nesse papel.”

“E o sobre o que você conversa com as suas amigas?”

“Sobre uma heroína que começa do zero e consegue vencer na vida, consquistar o mundo e se casar.”

Depois dessa experiência de teletransporte, dei de cara, por sorte, com a tal “entidade” que, de braços cruzados e batendo o pezinho no chão, ordenou:

“Agora senta e escreve.”

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