quarta-feira, 11 de junho de 2014

Sutileza

É uma coisa ínfima que, na hora errada, pode alterar a ordem do dia; é tão mínima que quase não teria espaço para ambiguidade, não fosse contraditória em sua essência. Às vezes, em dias comuns, o mundo parece concentrado como numa partida de xadrez, e o passo exato deve ser dado no instante preciso.

Diante de uma chuva delicada, quase imperceptível aos olhos das jovens participantes daquele jogo diário, o representante vermelho, feito um espantalho paralisante, imbuído da mais importante das missões, exibia-se com mais vigor. 

A atmosfera local mantinha quaisquer semoventes a uma distância que não poderiam ser vistos nem com uso de binóculos. Os pássaros, que por ali sobrevoavam, coincidentemente, fizeram uma pausa no poste de luz. 

Se fosse possível tirar uma foto aérea dali não seria registrado qualquer movimento, não fosse o desconforto de uma delas, causado pela pressão intermitente do canto do pé esquerdo, ao se esgueirar suavemente para o lado direito, na tentativa de aliviar a dor fina de um calo, e por pensamentos tacanhos que lhe assoberbavam, mas que na foto não seriam apreendidos.

A inércia daquele espantalho vermelho só poderia estar escondendo uma falha oculta, afirmava uma delas com um muxoxo, enquanto a outra observava fixamente o seu opositor.

Enquanto uma jovem olhava de soslaio, numa tentativa recatada de encorajar um movimento um pouco antes do tempo determinado, a outra jovem parecia inamovível, nem sequer demonstrava perceber a sofreguidão disfarçada da primeira; essa chegou a pensar que a jovem inerte estava entregue a reflexões oníricas e possivelmente tinha esquecido onde estava. Se isso tivesse ocorrido a ela própria, ela poderia perder despercebida a exibição dos representantes vermelho e verde, até que alguém lhe chamasse atenção. Por isso, a hipótese lhe soava razoável.

“Seria ela uma pessoa inflexível?” Perguntou-se, esforçando-se para adivinhar o que se passava no universo da transeunte vizinha. Aquele detalhe impalpável mais visível no outro que é também capaz de cegar os que pregam plena clareza, conduzindo-os ao ponto dissimulado do bom senso. 

Uma dúvida quase imperceptível brotou daquelas gotas finas de água: quem estaria sendo inflexível? Quem não queria seguir, ou quem não queria esperar?

Para uma delas, talvez fosse uma questão de hábito, que não lhe ocorria questionar. Ambas poderiam transgredir a regra; ou, pelo menos, uma delas demonstrava potencial para fazê-lo; não havia risco da consequência pecuniária ser executada nem tampouco seria crime inafiançável, ela havia refletido sobre isso; contudo, uma sensação ínfima impedia-lhe de seguir. 

A dualidade das coisas mínimas, que apesar de ínfimas podem transformar-se em eventos inesquecíveis, como uma dor de dente, uma unha quebrada, a ausência de pólen ou do humor, a gentileza, o glutem, a chatice, o desespero, a raiva, o cheiro, o beijo, o abraço, uma palavra, um segundo, um gesto, um calo, aquele sinal de trânsito, ou quaisquer coisas pequenas que garantem não ter fim, e que se, no entanto, evaporassem sobraria um isolamento insípido e incolor. 

Mastigando o ar, ela esperou o verde refletir do outro lado para garantir que o mundo permaneceria diverso, colorido e cheio de sabor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário